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Kuchen (cuca) – um bolo alemão?

Kuchen (cuca) – um bolo alemão?

As especificidades da arte culinária alemã estão nos ingredientes e em suas combinações, no mode de cozinhar, nos sabores e na consistência. Mais que apenas o “segredo” do saber fazer (sauve faire), a particularidade com que se seleciona os ingredientes, capazes de modificar o sabor e a propriedade dos alimentos, resulta no sucesso da receita.

Um dos pratos recorrentes à cultura alemã é o bolo Kuchen (cuca) – massa coberta por uma farofa crocante, à base de manteiga – vendida como uma tradicional e genuína receita. É importante saber até quando, em que medida e onde a tradição da culinária alemã mantém-se vívida e/ou fiel.

A Kuchen é um dos bolos mais conhecidos da culinária alemã
A Kuchen é um dos bolos mais conhecidos da culinária alemã

A Kuchen é uma receita original surgida na Alemanha?

Três questões sobre esse assunto:

  1. O que é típico?
  2. O que é tradicional?
  3. O que é autêntico?

Diz-se típico, todo o produto que pertence a um determinado grupo, afirmando a veracidade e reafirmando a similaridade étnica; tradição é o que um mesmo grupo social compartilha, passando e aprendendo de geração em geração e salvaguardando as artes e os ofícios dos saberes; autêntico é tudo que se mantém fiel às suas origens, não sofrendo alterações ao longo do tempo.

A partir dessa análise podemos perceber que a Kuchen é uma invenção na culinária alemã. Trata-se, portanto, da invenção de uma tradição¹. Originalmente a receita pode ter sua origem na Alemanha, porém se tornou típica entre os imigrantes, aqui no Brasil, que incorporaram à receita produtos que no país-origem não existiam – a Bananenkuche (cuca-de-banana) é um bom exemplo.

O cardápio das confeitarias, cafés e bistrôs colocam em xeque a questão de que a Kuchen tradicionalmente seja um prato exclusivo alemão. O produto está acessível a todos independentemente de descendência étnica.

Como elo com a culinária alemã podemos destacar o ingrediente-mor da receita: a manteiga. Desde a Idade Média, as elites daquele país encontraram na manteiga um meio de se distinguir do restante da sociedade. Os registros de receitas da nobreza da época assinalam a ocorrência do abuso desse ingrediente, sendo o diferencial no sabor de sua culinária.

Talvez, por isso, a Kuchen que hoje se produz em regiões de origem alemã seja tão especial, tão mais saborosa: ela se mantém autêntica aos segredos da “vovó Alemanha”. As doceiras usam e abusam da mais saborosa manteiga!

Assim se reinventam e se reinterpretam culturas. Típica ou não; tradicional ou não; autêntica ou não, a Kuchen é um bolo recorrente hoje à cultura alemã. Reinventada e reinterpretada, atualmente a atração é a Erdbeerekuche (cuca-de-morango). Vale lembrar que na Idade Média, diferentemente da manteiga, os morangos eram considerados vulgares, pois seus frutos eram rastejantes e à época, quanto mais alto se encontrava o fruto, maior o seu valor de nobreza!

Mais importante do que a discussão se a Kuchen seria ou não uma receita alemã autêntica ou inventada, deve-se entender que é uma receita simbólica entre um grupo social, constituindo-se em um fator de identificação cultural e, portanto, carece de registros para que não se percam os segredos do seu saber fazer (sauve faire), as particularidades com que se selecionam os ingredientes, capazes de modificar o sabor e a propriedade dos alimentos. Esses são passos importantes para o reconhecimento da Kuchen como patrimônio alimentar de um grupo social.

A tradição é afirmada pela sociedade quando ela reconhece um produto com algo característico de um determinado grupo étnico. É o que ocorreu com a Kuchen. Originária ou não da Alemanha, é sem dúvida alguma o bolo mais autêntico e genuíno das cidades que tiveram seus primeiros habitantes vindos daquele país.

Kuchen: Um Patrimônio Alimentar

Os produtos alimentares, bem como os objetos e conhecimentos usados na produção, transformação e consumo de alimentos, têm sido identificados como objetos culturais portadores da história e da identidade de um grupo social.

Antes que se deem por totalmente perdidas as receitas tradicionais, precisamos entender que a alimentação humana é muito mais do que um fato biológico, mas um ato social e cultural. O ato de comer implica representações simbólicas decorrentes da rede de relações sociais que identificam o alimento a uma determinada sociedade ou a algum segmento dela. O alimento se constitui em um produto cultural, pois é por meio do alimento e da alimentação que o homem se revela e revela seu grupo social.

Desse modo, podemos destacar queKuchen tem sido um elo de identificação de um grupo social, difundida como receita típica entre os descendentes alemães. Independente das variações e, mais recente, as adaptações da receita original, nota-se que este bolo se faz presente em praticamente todas as cidades brasileiras que têm algum traço cultural alemão. A Kuchen está presente em festas religiosas e nas padarias, nos triviais cafés da tarde até nos sofisticados cafés coloniais. O bolo constitui-se, portanto, em patrimônio alimentar da cultura alemã no Brasil.

Mas qual a função ou o objetivo por trás disso? Por que a Kuchen deve ser considerada um patrimônio alimentar? O objetivo é estimular a população a repensar a relação com os alimentos e lutar por um sistema alimentar mais justo, equitativo, saudável, sustentável e solidário. Além disso, a ideia é valorizar a identidade alimentar, presente nas especificidades das culinárias regionais do país, bem como nas dimensões social, cultural, econômica e política da alimentação.

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¹ quanto ao assunto, recomendo a leitura do artigo A Invenção da Tradição já publicado anteriormente, com base no livro homônimo: HOBSBAWM, Eric & RANGER Terence (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.
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Referências:

  1. BAUER. Jonei. Plano Municipal de Cultura. Tríscele, 2018.
  2. DEMETERCO, Solange Menezes da Silva. Doces lembranças: cadernos de receitas e comensalidade: Curitiba: 1900-1950. 1998.
  3. FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. Histoire de l’alimentation. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1996.
  4. REINHARDT, Juliana Cristina. Alemães, comida e identidade: uma tese ilustrada. Máquina de Escrever, 2014.

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Jonei Bauer:

O texto acima é de inteira responsabilidade de Jonei Bauer, não expressando necessariamente a opinião do Portal do Rancho.

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