Toda a paisagem é composta por memórias não somente daquilo que está à nossa vista, mas também daquilo que se encontra em nossas mentes; revivê-las seria recorrer aos nossos arquivos pessoais e que, às vezes, se perdem no tempo. O filósofo Edward Casey (1987) em sua obra “Remenbering: a phenomenological study” nos apresenta a ideia de conexão entre o conceito de “lugar” ao de “memória”, propondo a ideia de uma “memória do lugar” (place memory), que seria a persistência estabilizadora do lugar como um contenedor de experiências que contribui tão poderosamente para a memorabilidade intrínseca. Uma memória alerta e viva se conectaria, então, a seu ver, espontaneamente com o lugar, encontrando nele traços que favorecem e se desenvolvem paralelamente às suas próprias atividades, fato que o leva a afirmar que a memória seria “naturalmente orientada em relação a lugares (place-oriented) ou, pelo menos, suportada por lugares (place-supported)”. (CASEY, 1987, p.186-187)
E qual seria, então, a relevância do lugar nessa discussão? Sem conhecimentos históricos, ou melhor, sem a própria noção de memória, das coisas ditas ou feitas, seu presente será sem finalidade e seu amanhã sem significação. Isso nos chama a atenção para o fato de que não podemos funcionar sem passado tangível ou rememorado, pois, cada cena, cada objeto é investido de uma história de contextos reais ou imaginários e a identidade que percebemos provém de ações e de desejos passados, não somente como nós retratamos, mas tal qual como os escutamos ou como como nos descreveram. O passado incorpora-se nas coisas que construímos, deixando de ser apenas rememoração, mas influenciando a maneira de agirmos e transformarmos as paisagens que criamos. Becker apud Lowenthal (1975, p.32) já nos alertava para o fato de que “[…] sem esse conhecimento histórico, sem a memória das coisas ditas ou feitas, seu presente será sem finalidade e seu amanhã sem significação”.
O lugar importa porque ele é a dimensão física de nossas vidas, e lar para as nossas tradições e memórias. Todos nós nos tornamos ligados a edificações e locais que criam beleza, marcam eventos de significado histórico e cultural e servem como um locus para encontro da comunidade e identidade de uma cidade; importa porque as nossas vidas são enriquecidas por viver numa cidade onde o meio ambiente natural e construído se articula em ricas camadas de história, memória e narrativas.
Compreender nosso tempo hoje exige sempre a necessidade do passado. Nos dias atuais, em que a sociedade adere rapidamente ao “novo” em detrimento do “velho”, corre-se o risco de viver-se uma amnésia coletiva, ou seja, a perda da consciência histórica. Diante deste quadro, crescem os movimentos de valorização da memória e dos patrimônios (material e imaterial) a fim de não se perder os laços com o passado, buscando-se apreender a dimensão social e a histórica incutida. Entender o passado, como elemento de compreensão da memória, vem sendo um elemento bastante considerado atualmente.
Mas, diante da impossibilidade de resgatar completamente a memória coletiva de um lugar, que é a soma das memórias individuais, busca-se a obtenção das informações mais relevantes sobre ambas, sempre com a preocupação de relacionar os ambientes físicos remanescentes com as experiências e processos socioculturais dos grupos que tiveram vínculos diretos com estes aspectos num determinado momento histórico.
Perceber, seletivamente, aquilo que estamos habituados a ver, confere-nos sentido a certos aspectos e formas das paisagens porque partilhamos a sua história. A bagagem de experiências que acumulamos e registramos ao longo da vida é adquirida através de contos que ouvimos, dos livros que lemos e de imagens vistas, culminando em um arquivo que compõe nossa memória e, ao vermos um objeto, um agrupamento ou uma vista, eles são inteligíveis porque, em parte, são familiares do nosso próprio passado. Vemos as coisas ao nosso tempo como elas são e como havíamos visto anteriormente; nossa percepção é preenchida por experiências anteriores, preenchidas pelo passado, muitas vezes distante ou adormecido.
A noção de tempo sempre foi um grande mistério, podendo ser dividido entre presente, passado e futuro. Para Santo Agostinho, o tempo presente existe, mas ele se interroga em relação ao passado e ao futuro, já que não podem ser medidos pela sensibilidade. “Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde elas estão. Se ainda o não posso compreender, sei todavia que em qualquer parte onde estiverem, aí não são futuras nem pretéritas, já lá não estão”. (AGOSTINHO, 1973)
Essa contextualização prévia, entre temporalidades e memórias, ou melhor, sobre a “memória do lugar”, faz-se necessária para que possamos entender o que passamos em nosso tempo presente. Os resquícios do ontem que por nós foram apreendidos incutem em novas dinâmicas de percepção dos signos interpretativos desse lugar, que passa então a ser muito mais que apenas uma casa. Ao iniciar esse ensaio, sob o título “A memória e a memória do lugar: Preservar a história além da arquitetura preocupando-se com o significado social – trinta anos do Museu Hercílio Luz” o intento dessa pesquisa é a de submergir além daquilo que podemos ver ou estamos acostumados a contemplar. E trazer provocação àquele(s) cuja identificação com a memória do lugar se sentir pertencido.
O estado de Santa Catarina possui 342 bens imóveis edificados tombados pela esfera de poder estadual cujas regiões de colonização alemãs foram aquelas para onde convergiam as ações de preservação resultando em 69% do total da preservação patrimonial. Povoadas pelos movimentos migratórios a partir de 1850, legaram, à cultura brasileira, um inegável patrimônio histórico que guarda a memória da ocupação rural e urbana de regiões que definiram a vida social e econômica de Santa Catarina. Abrangem vários domínios da vida social como atividades agrícolas, industriais e comerciais; a vida doméstica, religiosa, comunitária e cultural. O Estado possui 293 municípios, mas a distribuição desses 342 tombamentos estaduais se dá em apenas 38 municípios. Destes, 21 municípios têm apenas um bem imóvel tombado.
O poder público estadual por meio do Decreto nº 25.880 de 05 de junho de 1985 instituiu sob o número de registro P.T. nº: 006/84 o título de bem patrimonial tombado à Antiga Casa de Campo do Governador Hercílio Luz – Estrada Geral de Taquaras, por entender a relevância do valor simbólico deste prédio. Propriedade adquirida no início do século passado, em 1911, pelo então governador do Estado, que dizem ter escolhido Taquaras como local para descanso e reabilitação. Mais poético ainda é afirmar que o governador imitando a intelectualidade do eixo Rio-São Paulo escolhera essa região igualmente àqueles que à época escolhiam as Serras Fluminense e da Mantiqueira.
A casa guarda características construtivas da imigração alemã e que é anterior à chegada de Hercílio Luz. Taquaras foi a última linha colonial da Antiga Colônia de Santa Izabel e teve sua formação caracterizada pela distribuição linear ao longo de uma via única (Strassendorf), aproveitando o traçado original do antigo Caminho das Tropas, o primeiro trajeto que ligou por terra a Vila de Lages (Capitania de São Paulo) ao litoral da Capitania de Santa Catarina, estabelecendo uma rota comercial para o escoamento das produções. A ligação terrestre se fazia necessária para a troca entre as vilas. O espaço entre o litoral e a Vila de Lages, então desconhecido, era denominado por “sertão”, ou seja, “lugar de risco e perigo, terra de inimigos e bichos indomáveis”. (BRÜGGEMANN, 2008, p.25)
O interior, antes desconhecido, precisava ser explorado. Havia a necessidade de se povoá-lo e de explorar suas riquezas. Era traçado um novo projeto de ocupação para a região. Com a concessão de terras se iniciava um novo período. Povoados foram se formando. LUZ (1999, p. 105) descreve que até 1901 a estrada que partia da Ilha de Santa Catarina só chegava até Taquaras; daí para adiante só se podia viajar a cavalo, gastando mais quatro dias para se chegar a Lages. A primeira estrada só foi completada cinco anos depois, em 1906. Taquaras prosperou durante esse período. Tinha um comércio ativo e consolidado com hospedarias, invernadas de pouso para os tropeiros e um latente comércio que ligava o povo do planalto ao povo do litoral. A vila de Taquaras surgiu miscigenando o imigrante europeu ao caboclo viajante. Juntos, enfrentaram as adversidades da região e confrontaram-se com os nativos, os bugres que aqui já viviam bem antes dessas outras etnias. Surge aí, uma comunidade autônoma, independente, e que configura no cenário histórico catarinense como um grande marco: Taquaras foi morada oficial do governador do Estado de 1911 até o final daquela década, exercendo papel, às vezes, de sede-provisória do governo, conforme evidenciam os documentos da época, que noticiavam a vinda do governador Hercílio Pedro da Luz e dos seus correligionários – que da sua fazenda, em Taquaras, administravam Santa Catarina por vários dias, até o retorno deles a Desterro.
Mais tarde, Hercílio Luz vendeu a propriedade para a família Schütz, que nela viveu pelas décadas seguintes até ser esvaziada e abandonada, servindo de abrigo para culturas agrícolas e animais. Antes, porém, a casa foi cenário de festas; de casamentos e batizados daqueles que ali viveram e que hoje emprestam seus nomes à memória de escolas, clube, ruas e praça da cidade. A casa testemunhou ao longo dos tempos o progresso e, também, o período de recessão que a localidade teve, acarretado pela desaceleração da indústria madeireira e pela mudança do trajeto da estrada que isolou Taquaras. Viu seus vizinhos se mudarem, influenciados pelo êxodo rural que acometia todo o país. Por fim, a casa quase em ruínas, antes que fosse totalmente apagada das nossas memórias encontrou na vontade do poder público o investimento necessário para que a reerguessem, agora reconhecida e tombada como patrimônio histórico, testemunha de um tempo que não se queria apagar. Virou museu e desde então vem estabelecendo uma relação de identidade com os cidadãos daqui, passando a ser um objeto de reapropriação por parte da sociedade.
Sua manutenção deve ser feita com o intuito de preservar os valores comunitários, pois além de preservar o patrimônio material no qual a população se identifica, surge a necessidade de preservar a memória coletiva. Não se trata apenas de preservar o passado, mas reverenciar o passado e a cultura ainda presentes. “Da restituição das identidades culturais a um tratamento das memórias coletivas, as razões de modernizar a própria ideia de conservação constituem a lógica dessa reabilitação do sentido”. (JEUDY, 1990, p.1)
A cultura estampada na natureza socializada é parte do registro de um determinado tempo, e a outra parte desse registro encontra-se na memória coletiva social. Porém, mantendo signos e atividades vivas, que sujeitas à temporalidade, podem sofrer alterações ou não, é uma forma de manter a dinâmica da vida do local. O cenário não fica sendo apenas uma realidade desaparecida, mas adquire vida própria. Memória serve como forma de conservação, continuação e divulgação da cultura. A manutenção ou a busca de identidade cultural motiva e dinamiza as práticas e políticas de conservação. “Conservar não quer mais dizer preservar, mas restituir, reabilitar ou reapropriar”. (JEUDY, 1990, p.2)
Concluindo, trago aqui uma definição poética do museólogo Mário Chagas para museu: “Os museus são casas que guardam e apresentam sonhos, sentimentos, pensamentos e intuições que ganham corpo através de imagens, cores, sons e formas. Os museus são pontes, portas e janelas que ligam e desligam mundos, tempos, culturas e pessoas diferentes.” Perceber a “memória do lugar” é nela também poder se inserir; fazendo pontes e abrindo portas e janelas. Perceber a “memória do lugar” é poder criar conexões entre o tempo; ligando e desligando mundos, culturas e pessoas diferentes. Perceber a “memória do lugar” é poder reviver e rememorar o passado num sentido de compreender e se identificar com o presente. É fazer o que fazemos agora: parte dessa história; é se sentir inserido na própria “memória desse lugar”.
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AGOSTINHO, Santo. Confissões, Os Pensadores Humano ( Trad. J. Oliveira e ª Ambrósio de Pina) Ed. Abril, São Paulo, 1973.
CASEY, Edward S. Remembering: A phenomelological study. Indiana University Press. 1987.
CASTRIOTA, Leonardo Barci; SOUSA, Vilmar Pereira de. A força do lugar: patrimônio cultural e memória urbana. In: PIMENTA, Margareth; FIGUEIREDO, Lauro César (org.). Lugares: patrimônio, memória e paisagens. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.
BAUER, Jonei Eger. Sertão desconhecido: de Desterro a Lages. Portal do Rancho, 2015.
BAUER, Jonei Eger. Centenário do Museu Hercílio Luz. (Cerimonial). FCC: 2011.
BRÜGGEMANN, Adelson André. Ao Poente da Serra Geral. Florianópolis, UFSC: 2008.
FIGUEIREDO. Lauro César. Memória, cidade e documentação: transformação da paisagem, cultural da cidade de Santa Maria a partir da fotografia. In: CASTRIOTA, Leonardo Barci; SOUSA, Vilmar Pereira de. A força do lugar: patrimônio cultural e memória urbana. In: PIMENTA, Margareth; FIGUEIREDO, Lauro César (org.). Lugares: patrimônio, memória e paisagens. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.
JEUDY, Henry-Pierre. Memória do social. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.
JOCHEM, Toni Vidal. Pouso dos Imigrantes. Florianópolis, Papa-livro: 1992.
LOWENTHAL, David. Le temps du passé, le leu du présent: paysage et memórie. In: Passage du temps sur le paysage (Collection Archigraphy tèmoignages). Paris: Infolio, 1975.
LUZ, Aujor Ávila da. Os Fanáticos. Crimes e aberrações da religiosidade dos nossos caboclos. Florianópolis: Imprensa Oficial, 1952.